Entre outros insultos, D. Hélder Camara foi chamado nesta campanha difamatória de “perigoso purpurado, líder comuno-nacionalista, arcebispo da subversão, bispo vermelho, opiáceo revolucionário, Fidel Castro de batina, guerrilheiro eclesiástico, pai da mentira, herdeiro espiritual do Antonio Conselheiro, vocação perdida de filósofo especulativo, fogoso fascista, arcebeatle Camara, gralha tagarela, líder anarco-esquerdista do clero, corruptor das consciências, carbonário incendiário, futuro Torquemada, Rasputin do Recife e Olinda, comunista sino-cubano, carcará vermelho, arcanjo do ódio, príncipe da Igreja cubana, romeiro do ódio ao Brasil, garanhão da desordem social, caixeiro-viajante da difamação, pastor de almas penadas.”
O livro reproduz a famosa entrevista de Dom Hélder Câmara ao semanário “Politika” em 1972. O DOPS proibiu sua publicação, destruindo os exemplares já impressos. Ela seria, então, republicada no jornal “O amigo do povo” de agosto de 1979. A seguir, transcrevemos os trechos em que Dom Hélder configura nitidamente a sua identidade socialista e marca o diálogo necessário com o que chama de “neomarxismo”.
FonteEntrego em vossas piedosas mãos o recorte de um
artigo publicado em
“O Globo” – “Meã Culpa” de autoria de Roberto Marinho,
no qual ele acusa Vossa
Reverendíssima de ter abjurado o socialismo,
inclusive de retornar às antigas
concepções de direita.Dom Hélder - O artigo prova que “O Globo” não leu,
jamais,as palestras, as conferências que tenho proferido ao longo destes
oito
anos e, até, livros que estão publicados, nem também leu os discursos
que fiz
agora na Alemanha e na Inglaterra.Se tivesse lido, tanto os
discursos de agora
como os anteriores que foram feitos ao longo desses oito
anos de pregação da
justiça como caminho para a paz. Se tivesse comparado o
que disse em Munique, em
Münster, em Freiburg e depois na Inglaterra, em
Liverpool e em Londres, como o
que tenho agora andado dizendo, com o que
tenho, inclusive, escrito, veria que
não há nenhuma alteração na minha linha
de conduta. O que eu digo é que há
injustiça por toda parte. Desejo um mundo
mais justo, porque sem justiça não
haverá paz. Denuncio as injustiças
criadas, sobretudo, pelas superpotências
capitalistas, mas sem poupar jamais
as superpotências capitalistas e as
superpotências socialistas. Não estão,
propriamente, nas atitudes para com o
Terceiro Mundo porque eu acho que, dos
dois lados, quando lhes convém, elas
exploram as mútuas divergências, mas
também quando lhes convém sabem marchar
juntas, com vistas à redistribuição
periódica das zonas de influência no mundo.
De diferente mesmo que eu vejo é
que para mim o capitalismo é intrinsecamente
egoísta, sem jeito, sem
remédio. A meu ver, não vejo saída para o mundo numa
linha capitalista ou
neocapitalista. Aí está como floração mais nova, Deus
permita que,
derradeira, no capitalismo, a macro-empresa multinacional, sem
dúvida uma
obra prima da moderna tecnologia mas também exemplo tremendo do mau
uso da
técnica, porque essas máquinas enormes, que poderiam estar a serviço da
humanidade, são postas a serviço de grupos cada vez mais restritos. Quando
denuncio as barbáries cometidas pela China, pela Rússia, lembro que se trata
da
deformação do socialismo. Espero muito de uma socialização humana, que
não caía,
de modo algum, na ditadura de partido ou de governo, e nem se
prenda ao
materialismo. Quando perguntam se posso contar algum exemplo de um
socialismo
desse tipo, eu lembro que talvez o da Tchecoslováquia estivesse
caminhando nesta
direção, quando foi ela esmagada pela Rússia. Lembro que,
veria, salvo engano,
Allende, no Chile, tentar, desesperadamente, criar um
socialismo chileno, que
não repita Rússia nem China nem Cuba. Que atenda às
marcas, às características
do povo chileno, mas quando há uma tentativa
destas, em área capitalista, como é
o caso do Chile, não há esmagamento
através de tanques, mas há outros
esmagamentos...Os privilegiados do país,
que perdem os seus privilégios
abusivos, gritam, clamam e obtêm
imediatamente o apoio da macro-empresa que tem
mil maneiras de tornar
impossível a caminha de um país subdesenvolvido, que se
quer liberar. Mas
não quero ficar monologando. Com certeza, você tem outras
perguntas a
fazer.V.Revma. acredita no socialismo com o único
sistema político e
filosófico, capaz de reajustar, sob o aspecto
político-econômico social a
humanidade ?Dom Hélder - Bem, quero deixar muito claro que a
minha
responsabilidade não envolve de modo algum a posição da Igreja. A
Igreja está
acima dos sistemas econômicos, de correntes partidárias, como
também de escolas
literárias. Ela está acima. A rigor, desde que o sistema
salvaguarde a justiça e
a caridade, ela não teria nada a opor. A Igreja não
pode impor, nem nunca impõe,
nem pretende impor nenhum sistema. Agora,
pessoalmente, embora no momento veja
que as grandes realizações socialistas
estão distorcidas, e são inúmeras, eu
penso, sobretudo, na Rússia e na
China- no entanto, tendo mais esperança na
experiência de uma socialização
humana que atenda o alvo dos nossos povos da
América Latina e do Terceiro
Mundo e não incida, nem no materialismo dialético
nem na ditadura, todas são
repelentes, tanto as de direita como as da esquerda.
São intoleráveis.Como estudioso das Ciências Sociais e,
conseqüentemente,
interessado na atual conjuntura político mundial, li há
pouco a encíclica
Octogésima adveniens em que o Santo Padre Paulo VI
condenou aos infernos o
regime capitalista e o regime marxista. O primeiro
por ser o imperialismo do
dinheiro, a tirania do lucro, o regime que
considera a propriedade propriedade
dos bens de produção como direito
absoluto, sem limites, sem obrigações sociais.
E o marxismo por ser
materialismo ateu, partidário da violência e da luta de
classes.V. Revma. podia dar uma idéia de como será
edificada a nova sociedade ?Dom Hélder - Claro que eu conheço, aceito e admiro
a Carta do Santo Padre a que
você se refere. Apenas lembraria que hoje,
entre os marxistas, existe o
neomarxismo. Penso, pelo menos, em homens como
Roger Garaudy. Penso no mais
recente dos seus livros, que me trouxe uma
alegria muito grande: “ La
Alternative”, publicado recentemente na França.
Os marxistas que caminham para o
neomarxismo, para uma revisão do marxismo,
em vez de ficarem apenas repetindo o
que Marx disse, o que Marx pensou,
agindo como Marx agiu, procurar agir, agora,
de acordo com a realidade que
aí está. Verificam que a ligação, que Marx supôs
que era necessária e
indispensável, entre religião e alienação, não é
necessária. Tanto não é
que, hoje dentro das grandes religiões do mundo,
inclusive dentro do
cristianismo, há grupos que absolutamente não aceitam que a
religião seja
vivida e levada a viver como força alienada e alienante, como ópio
para o
povo, procuram viver e fazer viver uma religião, ao contrário, encarnada
com
o Cristo. Outro reparo e isto está sendo feito pelo neomarxismo, é em
relação à ligação entre socialismo e materialismo dialético. Marx chegou
apensar
que o único socialismo que seria capaz, realmente, de livrar o mundo
das
estruturas de opressão, seria o socialismo baseado no materialismo
dialético.
Enganou-se duplamente. Primeiro, porque o materialismo dialético
não está sendo
capaz de salvar a Rússia e a China das graves distorções a
que o socialismo,
nessas duas superpotências, vem sendo submetido. Depois,
há socialistas que não
querem ser materialistas. Os materialistas que o
digam. Tinham a impressão de
que aceitar e admitir Deus,era transformar o
homem num escravo. Hoje se sabe que
na verdadeira interpretação cristã,
Deus, ao invés de querer manobrar o homem,
ao invés de querer ser um Deus
que absorve tudo, quer que o homem, criado à sua
imagem e semelhança,
participe do seu poder criador. Seja co-criador. Ele que
poderia facilmente
ter feito o mundo concluído, acabado e perfeito, de
propósito, apenas
iniciou e esboçou o mundo, deixando ao homem o encargo de
tomar a natureza e
completar sua criação. Então, hoje, se entende que um jovem
inteligente
possa, sem nenhuma dificuldade, admitir Deus. Admitir o espírito,
porque
isto não é sinônimo de reduzir o homem a um autômato. Então, dizia eu,
claro
que aceito e aprovo a Carta do Santo Padre, no octogésimo aniversário de
Rerum Novarum, mas apenas lembro que o próprio Santo Padre sabe que já há
uma
possibilidade de diálogo, não com aqueles que se amarram nas teses
marxistas,
não com aqueles que não abrem mão do materialismo dialético e o
querem impor
pela força. Mas é possível um diálogo com aqueles que evoluíram
do velho
marxismo. Guarda a crítica ao capitalismo, que continua, em grande
parte,
válida. Basta lembrar que Marx chegou a antever a macro-empresa
multinacional.
O concílio Vaticano II, no documento Gaudium et
Spes, procura edificar, à luz do
Evangelho, uma sociedade nova, uma espécie
de morada da justiça e de bondade, e
afirma que segue neste ponto o
mjistério da Igreja nos seus mais recentes
documentos e cita a nota “ Mater
et Magistra”, “Pacem in Terris” e “ Ecclesian
Suan”. Não acha V. Revma. que
tais idéias e soluções apresentadas pelo Santo
Padre são meras utopias, mais
um sonho frustrado, como muitos outros de Santo
Agostinho em “ A cidade de
Deus” e Campanella em “A cidade do Sol”.Dom Hélder -Primeiro, quero
referir-me à divergência de propriamente a Igreja construir
sistemas
políticos e cidades terrenas. A religião deve servir de inspiração para
todos aqueles que trabalham pela justiça. Recordo, a seguir, que um dos
grandes
erros cometidos através dos tempos, foi pensar que a eternidade
deveria de tal
modo absorver o pensamento que esquecêssemos o tempo. Hoje,
se sabe, a
eternidade começa aqui. É aqui que ela é construída. Por outro
lado, devo dizer,
em relação à utopia, que ai do mundo se não fosse a
utopia. Ai do mundo se não
fossem os sonhadores. Se os homens não sonhassem,
hoje não estaríamos partindo
para as viagens espaciais. É porque houve um
“Mito de Prometeus”, porque,
através dos tempos, o homem sempre ansiou voar,
arrancar-se da terra, que
estamos desembarcando na lua. Deus fez o homem
grande demais para caber na terra
pequenina. O homem é chamado por Deus a
participar da sua natureza divina, do
seu poder criador. Para mim, ser
chamado de utópico, ser chamado de Quixote,
está longe de ser uma nota
depreciativa. Sinto-me honrado quando, às vezes, me
aproximam do cavaleiro
andante...Neste caso, o adjetivo de utópico caberia à Sua
Santidade?
Dom Hélder - O utópico cabe a todos aqueles
que têm imaginação
criadora. Eu me lembro em família, em casa, uma das notas
mais terríveis era
dizer que alguém não tinha imaginação. A imaginação
criadora faz parte do poder
criador do homem, do homem que não nasceu para
repetir. Que não se conforma com
o mesmismo, de ir e voltar sempre pelos
mesmos caminhos. Do homem que não
aceita, no mau sentido da palavra,
burocratizar-se, mas que sente dentro de si
uma força que foi ali colocada
pelo próprio Deus. Uma força que o transforma em
participante da própria
divindade. Então, neste sentido, não há limite para a
imaginação do
homem.

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